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Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos

O Projeto Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos, coordenado pelo Instituto O Direito por um Planeta Verde tem como meta fomentar o desenvolvimento de instrumentos regulatórios relacionados às mudanças climáticas nos países: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, integrantes do Tratado de Cooperação Amazônica. LEIA MAIS

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13/11/2008

Legalização acelerada de terras na Amazônia pode manter lógica degradante


Secretaria de Assuntos Estratégicos e Ministério do Desenvolvimento Agrário defendem doação de terras até 100 ha e venda facilitada de áreas até 400 ha. Para pesquisadores, medidas favorecem ciclo de grilagem de áreas públicas.

Sempre presente na lista das ações de primeiríssima necessidade, a regularização das terras da Amazônia - região que se alastra por cerca de três quintos de toda a superfície nacional - voltou à cena e vem despertando encontros e desencontros dentro do governo federal.

Uma das principais fontes de notícias sobre o tema tem sido Roberto Mangabeira Unger, titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República e responsável pela condução do Plano Amazônia Sustentável (PAS), iniciativa lançada em 2004 e renovada em 2008 que tenta a todo custo estabelecer diretrizes para as políticas públicas na Amazônia.

"Há um consenso estabelecido sobre a prioridade da regularização fundiária da Amazônia. Se não resolvermos isso, nada avançará", declara o ministro Roberto Mangabeira Unger, em entrevista por telefone à Repórter Brasil. Nas conversas sobre o tema, costuma repetir que menos de 4% das propriedades particulares as região têm situação jurídica esclarecida. De acordo com levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), as áreas protegidas - como Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs) - somam 43% do território amazônico; o restante é composto de áreas supostamente privadas sem validação de cadastro (32%) e de áreas supostamente públicas fora de áreas protegidas (21%).

Professor licenciado de Direito da Universidade Harvard (EUA), Roberto Mangabeirase reuniu ao longo dos últimos meses em reuniões com integrantes de outras pastas e representantes dos governos estaduais amazônicos e aguarda a consolidação final das propostas pela Casa Civil.

A simplificação "drástica" das leis para a regularização fundiária ocupa o posto de medida prioritária, hierarquiza Roberto Mangabeira, que tem no colega Carlos Minc, ministro do Meio Ambiente, um dos principais apoiadores. A base primária para as novas medidas já virou lei. Criticada por organizações da sociedade civil que taxaram a proposta como Plano de Aceleração da Grilagem (PAG), a Medida Provisória (MP) 422, que amplia para até 15 módulos fiscais (unidade de medida que varia entre os municípios da Amazônia, mas se aproxima de 1,5 mil hectares ou 150 km2) o limite legal para a dispensa de licitação pública quando da transferência de terras públicas a entes privados.

Inicialmente, estão previstos três tipos de ações para contemplar posseiros não-regularizados que reivindicam áreas de aproximadamente 150 km². A primeira delas seria a doação sumária de terrenos de até um módulo fiscal (100 hectares, em média) diretamente aos posseiros. As terras de um a quatro módulos (100 a 400 hectares) seriam repassadas com base no valor histórico do imóvel (inferior ao valor de mercado), sem licitação pública. E nos casos de propriedades entre 4 e 15 módulos fiscais (400 a 1,5 mil hectares), a transferência da titularidade da terra para posseiros privados seria feita mediante o pagamento de valor de mercado, também sem licitação. "Pela primeira vez na história do país, o governo regularizará terras públicas com vistas a atender a pequena e média propriedade. Nunca tivemos isso", comentou o ministro da SAE.

A Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade ruralista que apoiou a MP 422 desde o início, calcula que, com a conversão da medida em lei, 90% dos posseiros da Amazônia "poderão comprar as terras que já ocupam há anos, sem ter de concorrer com outros interessados". Os outros 10% de posseiros com áreas maiores que 15 módulos fiscais seriam deixados para depois, conforme explicação de Roberto Mangabeira. As terras de 1,5 mil a 2,5 mil hectares, para as quais o processo de licitação pública continua valendo, ficariam numa espécie de "limbo". Já as propriedades acima de 2,5 mil hectares seriam suscetíveis à retomada de posse por parte do governo.

Cálculos do governo federal estimam que, com a estrutura e a legislação atuais, o processo de regularização fundiária da Amazônia consumiria 40 anos. A aceleração proposta pelo governo federal se concentraria de 2009 a 2011. Para além das promessas, pouco se sabe sobre os critérios que constarão dos projetos do Executivo que serão encaminhados ao Congresso Nacional. Roberto Mangabeira não vê, por exemplo, a necessidade de exigir que o posseiro esteja morando na terra a ser legalizada. Afirma ainda que mecanismos para evitar a concentração de propriedades e regras mais práticas em casos de disputa e necessidade de verificação da cadeia dominial estão sendo analisadas.

Em termos de iniciativas que não dependem de mudanças na lei, a organização da "varredura" aparece com destaque. A checagem de dados relavantes deixaria de ser feita com base apenas numa única propriedade, mas por meio de um conjunto de áreas rurais circunvizinhas. "Essas ações vão acabar com as condições de instabilidade que favorecem a grilagem", promete o comandante-mor do PAS. Para ele, atualmente "ninguém sabe o que é de quem" e, com as providências, o "saque" deixará de ser "proveitoso".

O ministro refuta a possibilidade de que a regularização possa beneficiar posses de "grileiros" - aproveitadores que forjam documentação ilegítima para ocupar novas áreas. Ele prefere diferenciar os posseiros desse grupo que age de forma irregular. "Numa fase histórica anterior - nos anos 60, 70 e 80 -, o Estado convidou populações a ocupar a Amazônia. Os posseiros estão na mesma terra há anos. É diferente dos saqueadores, que são nômades".

O risco de premiar ocupações de "má-fé" também é repelido pelo ministro da SAE. "Não há má-fé na presença do posseiro que dignifica a terra com o seu trabalho. Isso é um fato evidente", reage. Ele cita o reconhecimento oficial dos posseiros que ocuparam terras no Estado de Illinois, nos Estados Unidos, como exemplo de ações no mesmo sentido. "Há muita má vontade no debate brasileiro. Existe uma presunção da má-fé.", ataca. Ele critica a posição de setores que "não tem coragem de pedir para expulsar [os posseiros da Amazônia] e não quer que regularize [a situação dos mesmos]".

Proximidades

Uma das principais polêmicas fomentadas pelo ministro Roberto Mangabeira se deu com o anúncio da criação de um novo órgão - inicialmente batizado de Instituto de Regularização Fundiária da Amazônia (Irfam) - que depois foi adaptado para uma estrutura executiva mais enxuta nos moldes do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro). Para além da questão da estrutura adequada para a tarefa - que será tratada em outra matéria deste especial da Repórter Brasil -, as posições do chefe da SAE salientaram diferenças internas com outros setores do governo, especialmente com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ao qual o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) está vinculado.

Na essência, porém, os ministros Roberto Mangabeira e Guilherme Cassel estão mais próximos do que se imagina. O MDA também tem se movimentado no sentido de "acelerar" a regularização de terras na Amazônia. A estratégia do ministério, que tem sido inclusive apresentada a representantes da sociedade civil, consiste basicamente na mudança do marco legal - confirmando os pressupostos de doação de glebas até 100 hectares, de cobrança de valor histórico dos imóveis de 101 a 400 hectares - e na intensificação do trabalho com institutos de terras estaduais e com prefeituras (equipes com base municipal para o cadastramento), conjugada com a contratação de empresas privadas para o georreferenciamento. As fases de análise processual, de vistoria (apenas para áreas acima de 100 hectares) e de titulação também seriam abreviadas.

Nos 436 municípios da Amazônia Legal, há um total de 296.859 posses de até 15 módulos fiscais que seriam contemplados pela proposta governamental. Só no Pará são 89.786 propriedades nessa condição. Para propriedades com até quatro módulos fiscais, o MDA promete um rito expresso de apenas 60 dias para a titulação de cada área. Com a multiplicação das atuais 39 para 1.484 equipes, a pasta prevê a conclusão do processo nas 283.641 posses até quatro módulos fiscais em dois anos. A regularização da soma das terras de 4 a 15 módulos fiscais (13.218 posses) seria concluída em três anos.

"Agrobanditismo"

Em artigo, o professor titular de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP) Ariovaldo Umbelino condenou a MP 422 (oficializada na Lei 11.763/2008). Para ele, a legalização da venda sem licitação de terras públicas de até 15 módulos fiscais para agentes privados "é uma afronta aos princípios constitucionais e ao patrimônio público". Segundo ele, os 67 milhões de hectares arrecadados pela União na Amazônia deveriam ser reservadas para a reforma agrária, a criação de unidades de conservação ambiental e a demarcação de terras indígenas e quilombolas.

A grilagem das terras públicas da Amazônia, analisa Ariovaldo, "sempre veio alimentada pelas políticas públicas dos diferentes governos nos últimos 50 anos". Para ele, porém, a partir da Constituição de 1988 (que passou a exigir que a destinação de terras públicas seja compatibilizada com o plano nacional de reforma agrária), outra forma de "grilagem legalizada" passou a ser adotada, com colaboração da "banda podre" de funcionários públicos do Incra e de institutos estaduais de terra da região.

Munidos de informações sobre as áreas devolutas, esse grupo passou, de acordo com artigo do professor da USP, "a ´oferecer´ e ´reservar´ as terras públicas do Incra para os grileiros e indicar o caminho ´legal´ para obtê-las". "A denúncia destes fatos, já levou a Polícia Federal a fazer a Operação Faroeste no Pará e o Ministério Público Federal mover ação para cancelar os ´assentamentos da reforma agrária laranja´ da regional do Incra de Santarém (PA). O motivo é sempre o mesmo: a tentativa de ´oficializar´ a grilagem das terras públicas", prossegue Ariovaldo.

O professor cita uma série de medidas recentes do governo federal que corroboram para o que classifica de "farra da legalização da grilagem". Essas tentativas de legalização culminaram com a edição da MP 422, que reproduz o conteúdo de um projeto de lei apresentado anteriormente pelo deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB-PA), notório integrante da chamada bancada ruralista. Na opinião de Ariovaldo, "os grileiros do agrobanditismo ´cercaram e se apropriaram privadamente´ de tudo, pois, os funcionários corruptos do Incra ´venderam´ para eles ilegalmente todo este patrimônio público". E acrescenta: "Agora, [os grileiros] estão junto como o governo Lula, propondo ´soluções jurídicas´ para legalizar o crime cometido".

Do total de municípios da Amazônia Legal, 39% têm módulos fiscais de 100 hectares. Outros 38% têm módulos entre 75 e 90 hectares. "Ou seja, as terras griladas que serão regularizadas têm área acima de mil hectares, e é o próprio Incra que reconhece o crime lesa pátria: ´assim, entre 70 e 80% das posses de até 15 módulos fiscais estará em torno de 1000 ha [hectares]´ in "A MP 422 legaliza e protege a floresta", frisa o acadêmico.

"Dessa forma, é preciso deixar claro que as verdadeiras posses das famílias camponesas ribeirinhas ou não na Amazônia não ocupam mais de 100 hectares, portanto, estes atos do Incra são para regularizarem as grilagens das terras públicas do próprio Incra que seus funcionários corruptos ´venderam´ para o agrobanditismo", denuncia Ariovaldo.

Terra tem preço

Autor de extensa pesquisa sobre o tema, Paulo Barreto, do Imazon, conta que se deparou com vários casos de controvérsia na interpretação da lei e defende uma legislação mais enxuta. "Existe uma confusão muito grande acerca da legislação sobre posse. Todo mundo se diz posseiro", comenta."A questão fundiária é uma herança estrutural. Os grileiros entram na Justiça e sabem que levará 20 anos para [a questão] chegar ao Supremo [Tribunal Federal]. Sem mudanças na base legal, o avanço da devastação continuará".

A principal preocupação apontada por Paulo está na mera transferência de patrimônio público ou na cobrança de um valor "subsidiado" das terras na Amazônia. Ele chegou a estimar em mais de R$ 2 bilhões a renúncia patrimonial do governo com a doação de área de até 100 hectares e a cobrança de "valor histórico" nos domínios de 101 a 400 hectares. Na visão dele, as medidas que "tiram o preço da terra" podem reforçar a lógica do "ocupa primeiro e depois tenta se dar um jeito de ficar com a área".

Segundo Paulo, novas áreas podem continuar sendo abertas para extração de madeira e outros recursos naturais, exploração de mão-de-obra escrava e aproveitamento agropecuário sob a expectativa de que um dia o ocupante ainda receba a doação da terra ou pague apenas pelo preço histórico. "É como se estivessem doando ações da Petrobras. Trata-se de uma medida incongruente com uma política de redução de impactos socioambientais. A grande vantagem econômica para a abertura de novas áreas é a terra barata. Nesse caso, as terras sairiam literalmente de graça".

"Regularização fundiária transversal é fazer com que as pessoas paguem pelas terras", complementa Paulo Barreto. Sob a justificativa do "favorecimento aos pequenos" por meio de doações (apresentado com entusiasmo pelo ministro Roberto Mangabeira), todo o mercado tende perversamente a dar continuidade à lógica da "terra barata", pois os grandes podem facilmente arrendar as propriedades dos pequenos. Essa é a projeção do analista.

Um dos debates mundiais sobre o desequilíbrio socioambiental versa justamente sobre os efeitos dos incentivos perversos do Estado. A legalização sem cobrança do preço da terra, antevê o pesquisador, seria a confirmação dos subsídios para efeitos perversos como o desrespeito aos direitos humanos.

A complicação da tarefa, continua Paulo Barreto, pode ser resumida assim: fazer a regularização fundiária sem "abrir a porteira" para novas grilagens. Para ele, uma das formas de "travar" a expansão das fronteiras agropecuárias na Amazônia seria a aceleração de Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs) em áreas prioritárias de preservação. "Não adianta acelerar processos que validam coisas erradas e pular etapas para depois ter de enfrentar mais problemas. O governo precisa liderar uma negociação ampla e convencer a sociedade da importância do processo de regularização fundiária da região", recomenda. "A inércia e a manutenção de regras complicadas só favorecem o mercado paralelo e a grilagem".

Fonte: Envolverde/Repórter Brasil
Por Maurício Hashizume


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